Próxima Paragem
Desde cedo, decidi que seria eu a escolher as condições da minha morte: quando, onde, como. Mas não esperava chegar aqui. Não foi isto que me venderam.
«Morrer é a única certeza que temos na vida», ouvira uma mulher dizer ao dono da mercearia devia ter uns sete anos. Esperava na fila, com um papel com a meia dúzia de coisas que a minha mãe me mandara comprar e o pedido de fiado ao Sr. António — lembro-me de ler aquela palavra muito devagar (fi-á-dó) e decidir que talvez fosse a marca do detergente mais barato. Mais barato! Insistia ela sempre que me mandava às compras. Tens de olhar bem para os números nos preços, Lara. E desenhava-os muito redondinhos. Um número até 7 aqui à esquerda da vírgula é bom. Mais do que 7, tens de dizer ao Sr. António que tens de perguntar à tua mãe primeiro.
Seguia aquelas instruções com rigor, não que percebesse o que se passava, mas porque sabia que a minha recompensa eram os rebuçados que vinham com o troco. E havia sempre rebuçados.
A mulher que falava de certezas na mercearia vestia de preto — hoje sei que seria por estar de luto, mas na altura achei que era uma escolha de cor estúpida para um dia tão quente. O que me marcou nela não foi a roupa, nem o que ela disse; foi a forma como ela respondeu à consternação do homem da mercearia com a firmeza de quem aceitava o inevitável, sem reservas.
No caminho de regresso a casa, fui matutando naquela frase, repetindo-a na minha cabeça até ser quase um eco. Troquei o elevador pelas escadas, tal era a pressa, e irrompi porta adentro, empunhando o saco das compras como uma espada e declarando que ia morrer.
Olhei, triunfante, para a minha audiência, não sei se esperando uma ovação ou uma reprimenda, mas vi-os suspensos: a minha mãe com uma batata meio descascada na mão; o meu pai com o jornal meio descaído sobre a mesa. Depois, como se uma mão invisível tivesse ligado um interruptor, a batata ficou descascada por inteiro, e o jornal foi sacudido e esticado.
Os meus pais suspiraram e mandaram-me arrumar o quarto até ser hora de almoçar.
Nesse dia, numa folha arrancada a um caderno, escrevi: «Vou morrer. Lara, 7 anos.» Dobrei aquela declaração e decidi tê-la sempre comigo; não com medo de que a descobrissem, mas para ir anotando as várias ideias que iria ter sobre o assunto.
No dia da minha morte, tinha-se transformado num papel amarelado e rabiscado, com diferentes cores, um registo do meu plano e das suas alterações ao longo dos anos:
Vou morrer. Lara, 7 anos.
Vou morrer aos 15 anos. Lara, 13 anos.
Vou morrer aos 23 anos. Lara, 18 anos.
Vou morrer depois de fazer todas as viagens que quero fazer, de ler todos os livros que quero ler e de ver todos os filmes que quero ver. Lara, 21 anos.
Vou morrer aos 49 anos. Lara, 24 anos. Fazer lista de coisas que tenho de resolver até lá e lista de pessoas a informar da minha morte. Decidir melhor forma de morrer.
É importante que explique que fui educada como católica, mas nenhum dos meus pais era presença assídua na igreja para além do Natal, de funerais, de casamentos e de batizados quando eram convidados. Por isso, construí a minha perceção de Céu e Inferno que pouco tinha que ver com religião e muito tinha que ver com os filmes, livros e séries de televisão que consumia sofregamente. Decidi, por isso, que o Céu existia, mas o Inferno era uma produção fictícia, uma fantasia criada pela classe privilegiada para desencorajar os pobres e desafortunados de acederem aos prazeres da vida, concentrados que tinham de estar em ser força de trabalho e fonte de riqueza dessa minoria de gente flácida e sobrenutrida e com as bexigas que só brotam nas peles irrigadas por sangue apodrecido.
Não queria uma eternidade branca e dourada, afogada em neblinas de algodão-doce. Queria o meu fim: morreria aos 49 anos, em casa, por suicídio.
Porém, não penses que levei uma vida extraordinária ou melancólica.
Não mudei o rumo da História, nem o de uma pessoa com que me cruzei na rua aleatoriamente.
Apaixonei-me e terminei relações; fiz amor vezes suficientes para saber que, por vezes, o que o corpo precisa é de sexo regado a álcool, em becos mal iluminados ou casas de banho abafadas pela música ou quartos de hotel arrendados à hora — e aquela libertação elétrica em ganidos, e arranhões, e mordidelas, e costas arqueadas, e púbis molhadas, e súplicas por mais, gemidas baixinho enquanto se guiam mãos e bocas sobre a pele que ainda ferve.
Comi o mesmo prato durante semanas, repartido por caixinhas de plástico conservadas no congelador. Tive ataques de gula com chocolate de marca de supermercado. Gastei dinheiro em vinho bom e embebedei-me com pacotes de um litro que comprava para tempero. Atafulhei as estantes com livros recomendados que nunca abri e reli o mesmo livro-conforto de seis em seis meses.
Mudei de emprego cinco vezes, mas cansei-me de perseguir uma carreira aos 31. Fui a todos os jantares de Natal, encontros de teambuilding, atividades de voluntariado. Fiz amigos. E inimigos. Criei contas em redes sociais, dating apps, sites pagos de pornografia e assinaturas de jornais online. Chorei nos funerais dos meus pais.
A minha vida foi banal.
Vinte e quatro horas depois da minha morte, calculo que o meu advogado, o meu gestor de conta no Banco, o comercial da agência funerária e um grupo restrito de pessoas que considerava próximas tenham recebido os e-mails que agendei. Incluíam instruções, acessos, uma ou outra nota de despedida.
Não me lembro de morrer, se me senti embrenhada no escuro ou encadeada por uma luz branca, se vi os meus pais e a senhora da mercearia, se tive medo ou me deixei levar. No instante a seguir a ter acordado, pensei que era espantoso como o cérebro tentava reanimar o corpo fazendo-me acreditar que tinha simplesmente adormecido. Depois, começou a mostrar-me imagens desfocadas de mar, um cais, uma fila torta de pessoas que se estendia à minha frente e atrás de mim. Acho que sorri, ou talvez fosse o esgar causado pelo estertor do meu quase-cadáver.
Alguém me apertou o ombro esquerdo e voltei-me, alarmada. Reconheci o Sr. António da mercearia. Ele agarrou-me na mão e, após depositar nela quatro rebuçados de morango, fez-me sinal para que me virasse para a frente e avançasse.
— Mesmo a tempo, Lara. — A pessoa que segurava o que parecia ser um tablet sorriu como se me conhecesse e indicou-me o meu assento no ferry que, até aí, eu nem tinha visto. — À chegada, o meu colega encarregue da sua orientação irá recebê-la. Boa viagem!
A partir daqui, já sabes o que acontece, não é verdade? Mas faz parte do teu processo de entrada que eu te conte a minha experiência. Fui eu que decidi dar as boas-vindas desta forma. Nos primeiros tempos — rapidamente vais perceber que, aqui, o tempo mede-se… em tempo. É tudo muito subjetivo. —, naquilo a que eles chamam de fase de adaptação, não vinha ao cais, mas assistia ao desembarque daquela colina ali por cima da baía. Não precisava de binóculos para identificar quem estava confuso, a quem, como eu, tinham dito que o fim era o fim.
Muitas vezes (tantas, tantas, tantas), negociei a minha partida para a próxima paragem. «Não é possível, Lara.» Claro que, na altura, não percebi que era impraticável, achava que estavam a ser inflexíveis, a evitar assumir um erro administrativo qualquer. Mesmo que, como eu, não sejas uma pessoa religiosa, é incrível como vais buscar certos conceitos que nem sabias estarem tão enraizados no teu subconsciente para justificar a tua negação.
Enfim, a resignação chega não como alívio, mas como o peso sobre-humano do permanente. Não há Inferno, é verdade. Mas também não há Céu, nem Limbo, nem Purgatório. Há esta eternidade onde todos nós chegamos e da qual não podemos fugir.