«E a ovelha também se pôs a jeito?»
Noção para tótós: dois ódios de estimação explicados e um desenho com mousse de chocolate.

Interrompi a escrita deste post para gravar este vídeo, tal era a minha irritação. Esta é a minha última tentativa de falar com aquelas pessoas que acham que o mundo que as rodeia deve ser moldado à imagem e semelhança da população cisgénera branca, logo, tudo o que existe fora disso não é «real».
Ódio de estimação 1: «anda tudo muito woke»
«O wokismo anda a dar cabo disto tudo. Os filmes e as séries agora têm de ter sempre uma pessoa racializada, uma pessoa que não se identifica com o género que lhe foi atribuído à nascença, uma pessoa homossexual e uma pessoa neurodivergente.»
Ouço muitas vezes isto, não dito desta forma, mas vocês percebem. Maioritariamente, estas frases são proferidas por um homem cisgénero branco.
Eu explico, sem desenho: estas pessoas não estão ali representadas POR CAUSA DE TI. Estão ali para dar visibilidade a todas as outras pessoas QUE NÃO SÃO COMO TU. Porque, surpresa, o mundo fora da tua bolha é bastante diverso.
Ódio de estimação 2: terror não devia ter trigger warnings
Ao início, quando comecei a acompanhar a discussão sobre se os livros de terror deviam ou não ter trigger warnings, eu estava do lado do não. Não tinha grandes argumentos para além do mesmo que fui ouvindo nos últimos tempos: «é terror, amanhem-se».
De facto, quem gosta de terror sabe que não vai encontrar conteúdo fácil de digerir. Contudo, os trigger warnings não estão lá para TODOS. Mais uma vez, nem TODOS são o público-alvo dos avisos de conteúdo sensível.
Cheguei a usar este exemplo: imaginem quando estão num dentista e o médico vos vai explicando cada passo do tratamento antes de começar. Geralmente, é qualquer coisa do género «vai sentir uma ligeira picada» ou «vai sentir uma pressão aqui», acompanhada do alerta de conforto «se precisar que eu pare, diga».
Os trigger warnings no terror têm o mesmo papel. Não o de desencorajar a pessoa a ler o resto do conteúdo, mas a alertar para o conteúdo, para quem seja mais sensível a determinados assuntos se preparar.
Eu, vítima-sobrevivente de trauma, percebi que nem sempre preciso dos alertas, mas aprecio. Nem todas as pessoas que passaram por um trauma estão na mesma fase da sua recuperação; e é por isso que os trigger warnings existem.
Pessoas que acham que os trigger warnings não têm lugar no terror: se a lista estiver antes do texto, não a leiam. Passem à frente. Aquele pedaço de texto NÃO É PARA VOCÊS.
Mousse de chocolate
Já não sei de que mais formas posso explicar, de forma diplomática, que uma mulher vítima de violência sexual não foi vítima de crime porque «se pôs a jeito». E que mesmo que tenha ido a um encontro por vontade própria, o facto de estar a correr mal ou o facto de ela se sentir desconfortável, NUNCA deve ser interpretado como «ah, mas tivesses pensado nisso antes. Agora ‘tás aqui, tens de ir até ao fim».
As mulheres estão cansadas de explicar aos homens e a outras mulheres (que também as há) o que devia ser óbvio. Estamos exaustas, mesmo. E, a partir de hoje, descarto-me da responsabilidade de vos educar, meus caros e minhas caras. Amanhem-se. Leiam artigos e livros sobre o assunto, fora da vossa zona de conforto e da vossa bolha. Experimentem ler outras perspectivas. E, não, não é fazer uma pesquisa no Google e ler os primeiros resultados que aparecem — a propósito disto, e se não sabem como o algoritmo dos motores de busca e das redes sociais funcionam, ouçam este episódio do podcast Somos Todos Malucos.
Queimo o meu último cartucho com um exemplo simples e parvo, a ver se ajuda (como o cartaz da ovelha, a propósito desta notícia):
«Um homem, de 40 anos, foi encontrado pela PSP, sem sentidos, e abraçado a uma ovelha morta. Havia indícios de o animal ter sido violado. Tal como o homem, a ovelha estava ensanguentada na zona do órgão reprodutor. Aconteceu em Vila Real, no domingo à noite.»
Cenário 1 - Desenho 1
Andas a pensar numa certa mousse de chocolate há algum tempo. Trocas mensagens sobre a mousse com o restaurante, que te alicia com as supostas qualidades da sobremesa.
Finalmente, decides que queres mesmo comer aquela mousse de chocolate e marcas mesa no restaurante.
Contudo, no dia marcado, chegas ao restaurante, olhas para a vitrine das sobremesas e percebes que, afinal, a mousse não é bem aquilo de que estavas à espera, e decides ir embora.
Mas o dono do restaurante, irritado porque pôs tanto trabalho na promoção da mousse e tu agora não queres, tranca as portas do restaurante e obriga-te a ficar até terminares de comer a mousse.
Cenário 2 - Desenho 2
Mesmo restaurante e mesma vontade de comer a mousse do cenário anterior.
Mas, desta vez, mesmo que não estejas completamente convencida de que aquela mousse de chocolate é espectacular, sentas-te, pedes a mousse e começas a comer.
A meio ou a duas colheradas do fim, decides que afinal aquilo não te está a saber bem e decides que não queres continuar. Mas o dono do restaurante, enxofrado porque agora que começaste vais ter de terminar, enfia-te o resto da mousse goela abaixo às colheradas.